DAFFINY DELGADO E RODRIGO VARGAS
DA REDAÇÃO
Em 14 de setembro de 2017, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) ganhou manchetes Brasil afora e levou perplexidade aos corredores e gabinetes do Tribunal de Contas do Estado (TCE-MT).
De uma só vez, o ministro Luiz Fux determinou o afastamento de cinco conselheiros: o presidente do tribunal, Valter Albano, além de Antonio Joaquim, José Carlos Novelli, Waldir Teis e Sérgio Ricardo - que já estava afastado, mas por determinação do Tribunal de Justiça.
Todos foram alvo da Operação Malebolge, após terem sido citados na delação do ex-governador Silval Barbosa como beneficiários de um suposto pagamento de propina de R$ 53 milhões para liberar obras da Copa de 2014 em Cuiabá.
Com uma composição formada por sete membros, o Pleno do tribunal teve que ser recomposto e seus trabalhos em andamento regorganizados em caráter de urgência.
Integrante da primeira turma de conselheiro substitutos concursados, o catarinense Luiz Henrique Lima, de 57 anos, já ocupava a cadeira de Sérgio Ricardo quando o turbilhão chegou.
Em entrevista ao MidiaNews, ele descreve como foram conduzidos aqueles primeiros momentos e também relata as mudanças vividas nos pouco mais de nove meses nos quais o tribunal passou a ter maioria formada por servidores de carreira.
Vereador e deputado estadual na década de 1980 no Rio de Janeiro, Lima rejeita a afirmação de que conselheiros oriundos do universo político sejam necessariamente ruins. Ou que concursados estejam livres de ceder a pressões externas. E chama de "estapafúrdia" a tese de que os tribunais deveriam ser extintos.
"Existem três inimigos do controle, que são as pessoas que têm ambição de serem tiranos, alma de corruptos ou são incompetentes como gestores. Esses três estão todos os dias na imprensa falando mal dos tribunais e do controle", afirma.
Confira os principais trechos da entrevista:
Com todo aquele primeiro momento de perplexidade dos servidores e da sociedade, o tribunal continuou trabalhando. Na semana seguinte, fizemos a sessão normalmente
MidiaNews – Como foram as primeiras horas logo após a decisão do STF que afastou cinco conselheiros do TCE-MT?
Luiz Henrique Lima – Claro que o impacto foi grande, não se tinha ideia de que aquilo pudesse vir a ocorrer, mas a reação foi rápida, imediata, adequada e constitucional. O conselheiro Domingos Neto assumiu provisoriamente a presidência e convocou os substitutos para assumirem as relatorias dos afastados. Naquele momento, eu já estava substituindo o conselheiro Sergio Ricardo, e o Luiz Carlos [Pereira] já estava ocupando a relatoria da vaga do conselheiro Bosaipo. Claro que, com todo aquele primeiro momento de perplexidade dos servidores e da sociedade, o tribunal continuou trabalhando. Na semana seguinte, fizemos a sessão normalmente, concluímos o ano cumprindo as metas, elegemos a mesa diretora para o biênio 2018/2019 e seguimos trabalhando normalmente e cumprindo o papel institucional do Tribunal de Contas. É para isso que existem conselheiros substitutos concursados, para que nas hipóteses de ausência, férias, licença ou outros afastamentos legais, os substitutos respondam pelas cadeiras de ministros no TCU e conselheiros no TCE. E é o que nós estamos fazendo. Nos fomos selecionados para isso, estamos fazendo o nosso papel e o tribunal está indo muito bem.
MidiaNews – Como foi o processo de reestruturar e seguir adiante?
Luiz Henrique Lima – Não pode haver solução de continuidade na administração pública. Quando morre um presidente da República, o vice-presidente toma posse imediatamente. Quando morre um monarca, você tem aquela expressão ‘O Rei morreu, viva o novo Rei’. Então não pode haver descontinuidade, porque as instituições são mais fortes que as pessoas. Um dia cada um ali vai se aposentar, cada um ali vai fazer outra coisa, cada um vai morrer e a instituição continua, ela tem um papel no regime democrático brasileiro.
MidiaNews – Qual tem sido o principal desafio desde então?
Luiz Henrique Lima – Os tribunais de contas em geral, e não apenas Mato Grosso que viveu essa questão específica, estão fazendo um grande esforço para aprimorar a atuação do controle, e isso significa que o controle tem que ser menos formalista e mais efetivo. Ou seja, não apenas se ater a aspectos da legalidade estrita, mas também examinar a legitimidade e a economicidade, tanto na arrecadação da receita pública, quanto na execução da despesa pública. Esse é o primeiro ponto. O segundo ponto, o controle tem que ser mais tempestivo, tem que buscar ser simultâneo, acompanhar Pari passu a administração para evitar intervir apenas quando determinadas situações já estão consolidadas, em termos de irregularidades ou de danos ao erário. Então este controle mais tempestivo significa, por exemplo, a adoção de medidas cautelares em relação ao processo de contratação, antes que seja consumado e que eventuais vícios e falhas sejam confirmados.
MidiaNews – E como isso tem sido colocado em prática? De que forma?
Luiz Henrique Lima – Vocês podem observar pelas próprias manchetes nesses últimos meses. Foram inúmeras medidas cautelares importantes que o tribunal adotou em relação a contratações de grande impacto. Não só contratações, mas em relação a concursos públicos e a atos administrativos em geral, sujeitos ao controle do Tribunal de Contas. Então este é o desafio: fazer um controle mais efetivo e mais tempestivo. Outro aspecto que nos preocupa muito, e eu falo em geral, em relação aos tribunais brasileiros, é que, no controle que nós exercemos, nossas decisões sejam mais técnicas. Ou seja, que elas tenham maior fundamentação com base em normas jurídicas, levantamentos contábeis, dados quantitativos, econômicos e estatísticos, que nós possamos ter um respaldo grande para que nossas decisões sejam vistas pela sociedade e pelos gestores como decisões imparciais, que não estão ali sendo adotadas por conta de algum viés de simpatia ou antipatia com este ou aquele gestor.
Alair Ribeiro/MidiaNews
"Nós talvez estejamos andando em uma velocidade um pouco maior com a composição atual"
MidiaNews – Então o senhor acredita que, nesses nove meses, houve mais espaço para esse tipo de atitude?
Luiz Henrique Lima – Olha, como eu disse, esse desafio é o mesmo no Brasil inteiro. E é claro que, de acordo com a composição de um tribunal de determinada região ou Estado, você tem lá membros que são mais afinados, que são mais entusiasmados para determinadas causas e você tem outros que são ainda acomodados com os modelos anteriores de controle. Se você me perguntar sobre Mato Grosso nesses nove meses, sim, nós talvez estejamos andando em uma velocidade um pouco maior com a composição atual.
MidiaNews – Sempre que surgem denúncias envolvendo conselheiros, retornam os debates sobre a necessidade de os tribunais serem menos políticos e mais técnicos. E como é que o senhor vê essa discussão?
Luiz Henrique Lima – Eu não concordo com essa separação de que fulano é 100% político e sicrano é 100% técnico, isso não existe. Todos são, em alguma medida, técnicos e também políticos, não no sentido partidário e eleitoral, mas de terem uma visão de sociedade, de terem compromisso com a Constituição, com a democracia, com o controle, que é uma atividade essencial à democracia. Isso é uma posição política. Existe gente no Brasil que é contra a democracia, que é contra o controle e que é contra a Constituição. Então nós, mesmo tendo uma origem 100% técnica, porque fomos recrutados por um concurso público, nós temos uma posição política. Então eu não vejo essa contradição e também não vejo que ter uma origem parlamentar ou uma experiência como prefeito, ou como secretário de Estado, necessariamente seja um pecado original do qual jamais vai se libertar. E nem que quem veio do concurso público é um anjo, puro e santo e que jamais irá tropeçar. Isso não existe. Concursados não são santos. O que nós precisamos é que a instituição, que não vai ser nunca neutra, seja imparcial nos seus julgamentos. Ela tem que ter julgamentos técnicos com fundamentações sólidas e imparciais. E isso claro, tendo um processo de seleção que seja mais rigoroso na aferição das competências e das habilidades, daqueles que vão integrar a corte, você favorece isso. Na verdade, se você pegar a constituição, os requisitos para você se tornar ministro do TCU e do TCE não precisam mudar. Estão o notório conhecimento, a idoneidade moral, a reputação ilibada e a grande experiência. O que ocorre é que, durante muito tempo e em muitas situações, esses critérios não foram observados com rigor por aquelas instituições incumbidas de escolher seus membros.
MidiaNews – Esses critérios não deveriam mais bem definidos? Notório saber é algo muito vago...
Luiz Henrique Lima – Claro, por isso nossa associação defende publicamente uma proposta de emenda constitucional que inverta a maioria na composição dos tribunais de contas. Que dois terços tenham origem técnica, a partir de listas tríplices de carreiras concursadas, sejam elas de conselheiros-substitutos ou procuradores de contas. Mas que se reserve também um espaço para essas indicações que vêm do mundo do Legislativo, do mundo do Executivo, e que podem dar uma contribuição. Desde que sejam pessoas bem selecionadas. Nós temos no Brasil exemplos de grandes conselheiros cuja origem foi o Parlamento, ou que foram secretários de Estado, então não há um pecado original em ter indicação política. Mas o que nossa associação defende, olhando o quadro nacional, é que essas indicações políticas elas tenham uma participação minoritária no colegiado.
MidiaNews – Há até mesmo quem defenda o fim dos tribunais de contas, por julgá-los desnecessários.
Luiz Henrique Lima – Essa é uma idéia estapafúrdia. Tem três inimigos do controle, que são as pessoas que têm ambição de serem tiranos, alma de corruptos ou são incompetentes como gestores. Esses três estão todos os dias na imprensa falando mal dos tribunais e do controle. Você não pode ter uma sociedade democrática sem ter controle externo e independente. A nossa história republicana mostra isso, durante todo império se tentou criar um tribunal de contas no Brasil, e nunca foi aprovado. Com a República, Rui Barbosa conseguiu colocar na nossa Constituição. Depois, em todas as constituições autoritárias, como nós tivemos em 1937 no Estado Novo, ou em 1967 na ditadura militar, os tribunais foram esvaziados e enfraquecidos, quase relegados a órgãos decorativos. Nas nossas constituições democráticas de 1946, quando caiu o Estado Novo, e de 1988, por exemplo, os tribunais foram prestigiados, fortalecidos e suas competências ampliadas. Por quê? Porque a democracia precisa do controle. O controle é essencial à democracia. Já o ditador não gosta do controle porque não quer a transparência.
A corrupção é um problema central. É um câncer que ameaça a democracia brasileira. A corrupção provoca disfunção da economia
MidiaNews - Mas não existem outros modelos de controle que não incluem os tribunais de contas?
Luiz Henrique Lima – Existem. No mundo, você tem dois grandes modelos. O chamado modelo francês, o primeiro da era moderna, foi organizado por Napoleão. E onde os exércitos dele chegaram, esse formato prevaleceu. Chegou na Holanda, na Alemanha, na Itália, na Península Ibérica e, em razão disso, nós temos tribunais nestes moldes na Espanha e em Portugal, assim como nas ex-colônias portuguesas, como o Brasil. O outro modelo é o chamado Anglo-saxão, que tem origem na Inglaterra e se estendeu pelo Império Britânico e está hoje nos Estados Unidos, Canadá, Índia, Austrália, África do Sul. Esse modelo é o chamado da auditoria geral ou controladoria geral e é associado ao regime parlamentar de governo. Você não tem um órgão colegiado, mas tem uma única pessoa chamada controlador-geral ou auditor-geral, que é nomeada pelo Parlamento, normalmente por um mandato, e que só faz relatórios para o parlamento. Não tem poderes jurídicos, não aplica sanções e apenas faz recomendações. Esse modelo tem algumas vantagens, mas não é um modelo nem da nossa tradição jurídica e nem adequado para o nosso regime, que não é um regime parlamentarista. É um modelo que normalmente exige a existência de um sistema partidário forte. Porque normalmente o auditor-geral, ou controlador-geral, por decisão da Constituição desses países, é nomeado pelo principal partido de oposição. Exatamente para você ter o controle, o equilíbrio dos poderes. Então, é o principal partido da oposição que, mesmo sendo minoria no parlamento, indica o controlador-geral. Em um sistema como o brasileiro, isso ficaria muito complicado de ter uma efetividade. Então é estapafúrdia a ideia de acabar com os tribunais de contas ou alterar radicalmente o sistema de controle.
MidiaNews – O governador teve recentemente suas contas aprovadas, apesar de 17 falhas consideradas graves. Como explicar uma decisão dessas ao cidadão comum?
Luiz Henrique Lima – É muito fácil e muito simples. O relatório que o conselheiro João Batista apresentou sobre as contas do governador tem mais de 500 páginas, e o voto mais de 300 páginas. No relatório, ele faz um amplo e profundo estudo da economia e da gestão de Mato Grosso na última década e da influência que tem os cenários internacional e nacional sobre a nossa realidade. E são examinados, ali, centenas de aspectos. De tudo isso que foi examinado, restaram 17 falhas apontadas, ou seja, não é que a gestão tenha praticado essas falhas, muitas delas vêm de períodos anteriores ou são impactadas por fatores externos, mas essas falhas foram identificadas, foram analisadas e geraram 44 recomendações propostas pelo conselheiro João Batista e mais seis que eu apresentei em um voto em separado. Então isto seria motivo para reprovação das contas? De acordo com toda jurisprudência dos tribunais de contas de todo Brasil, não só de Mato Grosso, não. Se você for olhar as contas do ex-presidente Lula, muitas vezes elas teriam um número maior de falhas, ou do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, elas tinham um número maior de falhas e geraram um número maior de recomendações. Às vezes, nós temos contas do Poder Judiciário que também têm um número grande de falhas, mas que não levam a reprovação.
MidiaNews – O que poderia levar a uma reprovação?
Luiz Henrique Lima – Seriam aquelas irregularidades que nós classificamos como gravíssimas e que tivessem resultado de uma ação ou omissão deliberada do gestor. De não adotar determinadas providências quando fosse exigido ou de deliberadamente incorrerem em certos erros que maximizassem essa situação. No caso das contas do governador, isso não ocorreu em 2017. Quer dizer, o parecer do Ministério Público de Contas, e o entender de todos os sete conselheiros que se debruçaram sob esse relatório e esses números, foi de que nenhuma dessas irregularidades eram gravíssimas e que não havia nenhuma omissão do chefe do Poder Executivo que fosse comprometedora das contas. Vimos as falhas e fizemos as recomendações e essas recomendações são objeto de monitoramento. Eu vi a crítica que o presidente da AMM [Neurilan Fraga] fez, dizendo: “ah, mas e os prefeitos que foram condenados?”. Eu estava até fazendo um levantamento, as irregularidades que foram registradas nas contas do governo em 2017 nunca foram causas de condenação de prefeito.
Os pareceres prévios contrários que foram emitidos no ano passado, acho que foram 14 ou 15. Geralmente, o último ano de mandato, que acredito que foi em 2016, tem um nível maior de falhas incorridas durante o processo eleitoral, e há regras especificas na Lei de Responsabilidade Fiscal que valem no último ano de gestão. E, se nós olharmos os motivos de reprovação de todos esses prefeitos no ano passado, e não chegou a 10% dos que tiveram pareceres prévio contrários, nenhum foi pelas mesmas irregularidades que estão apontadas agora, são coisas diferentes que não podem ser comparadas.
Nós temos no Brasil exemplos de grandes conselheiros cuja origem foi o Parlamento
MidiaNews – A corrupção hoje é um tema recorrente no debate público no país. Como o tribunal pode auxiliar no combate a essas práticas?
Luiz Henrique Lima – Nós temos que entender que a corrupção não é “apenas um desvio ético”. Existe um setor da intelectualidade brasileira que minimiza a questão da corrupção e diz que isso é uma preocupação pequeno burguesa e moralista. Eu discordo, pois a corrupção é um problema central. É um câncer que ameaça a democracia brasileira. A corrupção provoca disfunção da economia. Um empresário que atua em um ambiente de corrupção, e que quer atuar corretamente, fica prejudicado. Isso gera perda de produtividade, menor geração de riqueza e menor geração de emprego. Então a corrupção provoca disfunções na economia. Ela compromete a execução das políticas sociais, porque o dinheiro desviado para a corrupção não está sendo aplicado na saúde, na educação e nas políticas sociais compensatórias. E mais, ela é uma traição à democracia, pois compromete o funcionamento social, contamina o processo eleitoral e distorce os resultados eleitorais. O Tribunal de Contas pode fazer alguma coisa? Pode! Mas, pode fazer tudo? Não pode!
Tem muitas coisas que não podemos fazer, porque são da competência de outros órgãos. Por exemplo: decretar prisão preventiva ou temporária de alguém, quebrar sigilo telefônico, conduzir alguém para prestar depoimento e firmar um acordo de delação premiada. Mas, o tribunal tem muitos elementos que lhe permitem detectar, na administração pública, a ocorrência de fraudes, de pagamentos indevidos e, além de exercer a competência dos seus julgamentos, ele compartilha essas provas e informações que decorrem da sua atividade de fiscalização com o Ministério Público e o Poder Judiciário. Então é isso que nós temos feito.
MidiaNews – Em relação às obras da copa, o tribunal fez tudo o que estava a seu alcance ou poderia ter feito mais?
Luiz Henrique Lima – Poderia ter feito mais. Poderia ter alertado com mais ênfase a sociedade em relação a muitas situações. O tribunal lançou vários relatórios sobre o atraso das obras e, quando o fez, foi violentamente questionado e atacado. Talvez tivesse que ter insistido mais nesse alerta, porque determinadas decisões que foram tomadas trouxeram grandes prejuízos que, hoje, estão bastante evidentes e claros. Naquele momento, talvez não estivessem ou talvez fosse necessário um trabalho mais aprofundado ou mais incisivo.
MidiaNews – Alguma obra em específico? Teria sido o VLT o símbolo disso tudo?
Luiz Henrique Lima – Eu não posso falar sobre um caso concreto porque muitas dessas obras da copa ainda são alvos de processos no Tribunal de Contas, e eu vou ser chamado a julgar esses processos. Então um comentário meu sobre um caso específico vai impedir que eu vote.
MidiaNews – Em relação ao governo do Silval Barbosa, que teve suas contas aprovadas, o senhor acha que o tribunal também poderia ter feito mais?
Luiz Henrique Lima – Sim, também poderia ter feito mais. Mas, veja bem, as informações que chegaram com a delação do ex-governador, assim como outras delações de ex-secretários, não eram informações disponíveis no momento em que as contas dele estavam sendo apreciadas. Muitas dessas informações, inclusive, ainda não estão comprovadas. A delação é uma declaração dele, pode estar ou não acompanhada de documentos, mas, para ter um grau maior de precisão, isso está sendo apreciado na esfera do judiciário. Eu não tenho conhecimento dos autos, então não posso dizer que 100% ou 50% do que ele apresenta ali é fato ou não. Isso vai ser decidido pela Justiça. Mas, em 2015, por exemplo, você não tinha o conjunto de informações que surgiu após as investigações da Lava Jato, da Ararath e de outras tantas, principalmente em 2016. Então o tribunal poderia ter feito mais? Poderia, mas não poderia ter feito tudo. Porque, naquele momento, ninguém no Brasil tinha as informações que hoje são de domínio público.
Alair Ribeiro/MidiaNews
"Eu não concordo com essa separação de que fulano é 100% político e sicrano é 100% técnico, isso não existe"
MidiaNews – A dolarização da dívida de Mato Grosso, concretizada durante a gestão de Silval Barbosa, recebeu sua atenção nos últimos anos e suas conclusões não foram nada agradáveis. O que pode falar a respeito?
Luiz Henrique Lima – Eu tenho um estudo bem completo sobre isso. Quando nós discutimos as contas do governo, eu abordei esse assunto porque esse contrato de dolarização está produzindo um impacto enorme nas contas do governo. O governo do Estado tem que pagar parcelas em dólar em março e setembro, e o valor do dólar é crescente. Então, a cada vez é um valor maior, porque o câmbio está descontrolado. O governo teve uma dificuldade muito grande para pagar em março e certamente vai ter dificuldade para pagar a parcela de setembro, porque o dólar explodiu. Então, essa foi uma decisão que eu qualifico como irresponsável e incompetente. Nesse contrato de dolarização, você trocou uma dívida com a União, em moeda nacional, por uma dívida em dólar. A dívida com a União você segue facilmente rolar com a receita em moeda nacional. Esse contrato em dólar tem prazo limitado e não conta com nenhum tipo de seguro ou de cláusula de proteção contra a variação cambial. Algo que me espanta é que essas delações ainda não tenham mencionado esse contrato, mas é bem possível que, em algum momento das investigações futuras, ele venha a ser também objeto de análise pelo Poder Judiciário. Eu preparei um gráfico que mostra como foi a evolução do pagamento em dólar e como seria a evolução em reais, se tivessem mantido o contrato anteriormente vigente. E o resultado é que, antes mesmo da atual explosão do dólar, pagamos R$ 200 milhões. São duas obras como a do novo Pronto Socorro de Cuiabá e ainda sobra para mais alguma coisa.
MidiaNews – Mas há o que fazer para reverter isso de alguma forma?
Luiz Henrique Lima – O que o governo está tentando fazer é transferir esse contrato de uma instituição privada para uma instituição multilateral de cooperação que é o Banco Mundial, mas está tendo dificuldades nessa negociação. E um fato curioso é que nós tivemos a informação de que, na época da assinatura do contrato, esse tipo de proposta de dolarização foi oferecida a vários Estados, como se fosse uma panaceia. Diziam que a taxa de juros seria menor, e realmente era, só que em dólar. E nenhum outros Estado brasileiro, além de Mato Grosso, comprou essa proposta. No dia da assinatura do contrato, o valor total da dívida era de R$ 968 milhões. De lá para cá, nós já pagamos R$ 930 milhões e ainda devemos R$ 994 milhões. Foi uma das operações mais desastrosas para o nosso futuro e que já está nos comprometendo hoje. Esse dinheiro está faltando para a expansão das políticas sociais e da infraestrutura, pois é preciso cortar de outras despesas para honrar as parcelas. Foi uma absoluta irresponsabilidade.
MidiaNews – Pedro Taques tem batido na tecla de que recebeu um “presente de grego”, na forma de leis de carreira que inflaram os gastos com pessoal durante seu governo. A solução da crise passa só pelo servidor?
Luiz Henrique Lima – Primeiro que, quando o governador afirma que essas leis foram aprovadas no apagar das luzes da gestão anterior, está correto. Eu apresento na minha declaração de voto apenas treze leis, mas tem muitas mais. Todas foram aprovadas no final de 2013 e início de 2014, mas para gerarem impacto nos exercícios seguintes, e sem que houvesse a projeção real da receita. Em 2014, nós já estávamos vivendo os primeiros sinais da crise econômica, e a coisa degringolou em 2015. Tivemos três anos de recessão, de decréscimos dos produtos econômico do país. Isso impactou Mato Grosso. As transferências federais, eu trago esse dado também, caíram em termos reais de 2016 para 2017, tanto para o Estado quanto para os municípios. E essas transferências federais são importantes, principalmente para os municípios. Então existe uma questão federativa mau resolvida. E ficamos com esta situação de gastos com pessoal que dão muito pouca margem de liberdade para o gestor.
No dia da assinatura do contrato [de dolarização da dívida estadual], o valor total era de R$ 968 milhões. De lá para cá, nós já pagamos R$ 930 milhões e ainda devemos R$ 994 milhões
MidiaNews – Qual é o cenário atual? Há mesmo o risco de demissão de servidores?
Luiz Henrique Lima – Se você analisar os gráficos da evolução da receita e a evolução comparada da receita com as despesas de pessoal, constatará que é algo insustentável. Por mais que você consiga melhorar a receita, e a receita de Mato Grosso melhorou mais que a federal, o gasto com pessoal é explosivo, principalmente por causa da questão previdenciária. As pessoas se aposentam cedo e ganham bem na aposentadoria. E elas estão vivendo mais. Só que isso tem que ser pago por alguém. Em um sistema previdenciário saudável, a contribuição dos ativos banca o benefício dos inativos. Mas isso não acontece. Em Mato Grosso, no ano passado, o déficit foi de R$ 500 milhões. Ou seja, além de tirar a contribuição dos ativos, você tem que tirar do Tesouro para cobrir os benefícios. E aí, o número de aposentados vai crescendo, o peso deles em relação à folha vai crescendo. A remuneração média deles é maior do que a remuneração média dos que estão na ativa. Então você tem ali uma margem muito estreita de manobra. E você tem despesas de custeio que não pode deixar de fazer. Não pode faltar comida no presídio, não pode faltar gasolina na viatura, não pode faltar merenda nas escolas, não pode faltar remédio no hospital. Somando as despesas obrigatórias e de caráter obrigatório, hoje você tem 98,38%. Aí você vai ter demissão de pessoal e isso não é invenção de ninguém. Isso é a Lei de Responsabilidade Fiscal que fala. Quando você ultrapassa o limite máximo você vai ter que adotar medidas para voltar ao normal e, entre essas medidas, está a demissão de servidores do Estado. É uma medida draconiana de força? É, mas você vai ter que reduzir isso em algum momento. Você tem que dar uma trava nessa espiral, para não chegar à situação que chegou o Rio de Janeiro. Então, olhando lá as recomendações do parecer prévio que nós aprovamos, tem uma série de propostas, de análises, essa não chega ainda a ser uma proposta, mas é levantada essa preocupação. Poderá chegar a esta situação, que vai exigir a adoção dessas medidas.
MidiaNews – Outro tema que lhe tomou tempo em auditorias foi a gestão das unidades de conservação estaduais. Tendo em vista o que foi constatado, o que acha dessa recente proposta de estadualização do Parque Nacional de Chapada?
Luiz Henrique Lima – Eu não me debrucei sob essa proposta e não sei se ela já está formalizada em algum projeto, em algum termo referente. Mas sou uma pessoa que leva o meio ambiente muito a sério. O que eu não entendo é que no Brasil ninguém, nem o governo federal, nem o estadual ou o municipal, conseguiu apresentar ou desenvolver um modelo adequado de gestão das unidades de conservação. Nós temos um potencial econômico extraordinário de exploração do ecoturismo, e uma necessidade de preservação da biodiversidade e da beleza cênica. Por exemplo, a Chapada, que é uma paisagem única no mundo e, de forma geral no Brasil, não se valoriza e não se investe nisso. O Parque Nacional mais antigo que nós temos é o de Itatiaia (RJ), que foi criado por Getúlio Vargas. Até o ano passado, eles ainda não tinham feito a regularização fundiário do parque. A Floresta da Tijuca, onde fica o Corcovado no Rio de Janeiro, que é um Parque Nacional, é objeto de invasão para favelização e caça clandestina.
Nas unidades de conservação estaduais, nós fizemos uma auditoria, que foi repetida este ano, e encontramos também enormes carências, como ausência de plano de manejo, ausência de servidores, de demarcação e limites. Então eu realmente não vejo, a princípio, vantagens ou desvantagens em ser estadual ou federal. Eu gostaria que, mesmo sendo municipais, estaduais ou federais, nossas unidades de conservação fossem bem geridas.
Alair Ribeiro/MidiaNews
"Foram inúmeras medidas cautelares importantes que o tribunal adotou"
MidiaNews – Essa questão em Mato Grosso está só no papel?
Luiz Henrique Lima – Não só em Mato Grosso. Um estudo foi feito em 10 Estados na região Amazônica e isso foi constatado em todos. E nas unidades federais também. No último governo do Lula, ele queria levar vários resultados lá para a reunião do G-20. Então fez um monte de decretos criando vários parques nacionais e unidades de conservação, para mostrar que tantos por cento da nossa área era protegida. Mas eram parques de papel, eram decretos. Nós temos que tirar nossas unidades de conservação do papel e, para isso, elas têm que ter uma exploração adequada. Tem que ter lá um estacionamento, um toalete, mesmo que tenha que pagar, como em qualquer parque nacional do mundo.
Faça uma concessão para uma empresa privada explorar, cobre uma taxa para tirar fotografia, uma taxa para andar de carro e, com esses recursos, você paga o pessoal que faz a limpeza e manutenção. Não tem mistério. O mundo inteiro tem experiências bem-sucedidas, mas aqui lamentavelmente estamos bem distantes disso. E eu te digo, começa pela floresta da Tijuca lá no Rio de Janeiro, destino de milhões de turistas do mundo inteiro, com milhões de testemunhas. Agora, quando pensa da floresta de Juruena ou Aripuanã, você pode imaginar a proteção que estão tendo as nossas unidades de conservação.
MidiaNews – Sua experiência como deputado e vereador no Rio de Janeiro de alguma forma auxilia o trabalho de fiscalização no TCE?
Luiz Henrique Lima – Eu creio que todas as nossas experiências de vida, se a gente tem humildade de aprender com os erros, contribuem para o melhoramento da nossa atuação. Então eu tenho muito orgulho do trabalho que eu desenvolvi quando fui parlamentar, quando fui auditor do TCU, como professor que eu ainda sou, porque nós estamos sempre aprendendo e tentando trazer aquilo que a gente aprende para o nosso trabalho. Algumas das experiências que eu tive são bastante úteis porque, em certas situações de aparente crise, mesmo as que parecem ser muito graves, a gente consegue relativizar e enfrentar com mais tranquilidade e humildade, porque já viu antes.
MidiaNews – O senhor foi líder do Leonel Brizola na Assembleia do RJ na década de 1980. Qual é a falta que faz uma figura pública daquele porte?
Luiz Henrique Lima – O Brizola era uma voz muito veemente e sincera, e que tinha uma causa que continua sendo de absoluta necessidade e prioridade para o Brasil, que é a educação de qualidade em tempo integral. Eu gostaria muito que houvesse mais líderes políticos no Brasil abraçando essa bandeira. Além disso tudo, ele animava muito o debate político, não é? Era um exímio debatedor e tinha muita ironia. Então ele elevava o nível e elevava a temperatura do debate.
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