LUCAS RODRIGUES
DA REDAÇÃO
A 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJ-MT) anulou a decisão que havia condenado o Estado a indenizar em R$ 85 mil, por danos morais, o juiz Ricardo Alexandre Riccieli Sobrinho, da 3ª Vara de Cáceres (234 km de Cuiabá).
A condenação havia sido aplicada em 1ª instância em razão de uma suposta “perseguição” promovida pelo promotor de Justiça Douglas Strachicini contra Ricardo Sobrinho. Como o suposto ilícito teria sido feito pelo promotor no exercício da função, a ação foi movida contra o Estado.
A decisão, do dia 12 de julho, negou recurso interposto pelo magistrado, que pretendia manter a indenização.
O relator do caso, desembargador Luiz Carlos da Costa, afastou a tese de dano moral e disse que não cabe à sociedade pagar danos morais “inexistentes” em razão de “picuinhas” entre o juiz e o promotor.
O longo e tumultuado histórico da rixa entre o juiz e o promotor começou em janeiro de 2007, quando o magistrado atuava na comarca de Vila Bela da Santíssima Trindade.
Ricardo Sobrinho contou que naquela época foi intimado a prestar informações à Corregedoria Geral de Justiça sobre fatos apontados em uma reclamação ingressada pelo promotor de Justiça.
Na reclamação, Douglas Strachicini acusava o juiz de ter sido omisso ao não tomar providências sobre o alegado “livre e irrestrito acesso” que o delegado de Polícia tinha nas dependências do fórum, “sendo que tal prática tinha por finalidade manter relacionamento com os servidores, objetivando ter informações privilegiadas relativas a ele”.
Em resposta, o juiz anexou documentos provando que havia determinado a todos os funcionários para que não permitissem a entrada de ninguém nas dependências privativas de trabalho. Após a explicação, a reclamação foi arquivada.
Porém, segundo relatou o juiz, ainda em janeiro daquele ano a Corregedoria Geral de Justiça recebeu outra reclamação do promotor de Justiça contra ele.
Nesta nova petição, o promotor Douglas Strachicini pediu a abertura de um processo administrativo contra Ricardo Sobrinho, para apurar fatos relacionados à agente administrativa do Ministério Público Estadual, Micheli Coelho Cano.
Segundo o promotor, o juiz teria dito no corredor do fórum que “essa Micheli, do MP, é uma fofoqueira”.
Após as oitivas e colheitas de documentos, a Corregedoria novamente arquivou a reclamação, por falta de provas contra o juiz.
Insistência em investigação
Apesar de a reclamação ter sido arquivada, pelos mesmos fatos o promotor de Justiça denunciou o juiz junto à Procuradoria Geral de Justiça, para apurar a suposta ofensa contra a servidora Micheli Cano, que, em tese, configuraria crime de difamação e/ou injúria.
Já o juiz impetrou um habeas corpus para suspender a investigação, pois, segundo ele, cabe ao Tribunal de Justiça – e não à PGJ – investigar supostas irregularidades cometidas por magistrados, ainda que na esfera criminal, conforme dispõe a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman).
A 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça suspendeu a investigação e, posteriormente, o caso retornou à Corregedoria. Como a corregedoria já havia analisado a mesma situação, a investigação foi arquivada por perda do objeto.
Mais reclamações
No ano seguinte, o promotor de Justiça Douglas Strachicini promoveu mais duas reclamações contra o juiz Ricardo Sobrinho.
A primeira foi motivada pelo fato de o promotor não ter sido atendido pelo juiz em sua casa durante o plantão, e sim no Fórum. A reclamação foi arquivada pela ausência de falta funcional.
Já a segunda reclamação teve como objeto a alegada inércia do juiz em ações de improbidade administrativas respondidas pelo delegado de Polícia da comarca.
Esta reclamação também foi arquivada após a Corregedoria constatar que Ricardo Sobrinho proferiu decisões nos processos dentro do prazo legal.
Suposto abuso
Após o arquivamento de todas as reclamações, o juiz Ricardo Sobrinho reclamou que o promotor Douglas Strachicini passou a fazer manifestações ofensivas, afirmando que ele estaria cometendo “erros grosseiros”, “atuando com dolo ou má-fé” e que seria “nervoso e inseguro”.
Dessa forma, o juiz contra-atacou e ingressou com uma reclamação contra o promotor na Procuradoria Geral de Justiça e na Corregedoria do Ministério Público Estadual.
Tanto na PGJ quanto na corregedoria as reclamações foram arquivadas. Todavia, a corregedoria reconheceu excessos por parte do promotor e emitiu uma recomendação para que Douglas Strachicini não ultrapassasse “os limites da polidez” com o juiz.
Em virtude do reconhecimento dos excessos, o desembargador Orlando Perri, do Tribunal de Justiça, encaminhou reclamação contra o promotor junto ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
Segundo Perri, se a própria corregedoria admitiu que houve abuso, logo, a medida correta seria a aplicação de penalidade ao promotor Douglas Strachicini, e não mera recomendação.
O CNMP então acatou a reclamação de Perri e determinou a instauração de um procedimento administrativo contra o promotor. Mas o promotor recorreu e conseguiu anular a decisão, voltando tudo à estaca zero.
Na ação de indenização, o juiz Ricardo Sobrinho afirmou que toda essa situação gerou um constrangimento ilegal a ele, “já que todas as reclamações/correições, conforme repisado, foram arquivadas em razão de não subsistir as acusações.
“Ademais, as denúncias descritas constam na ficha funcional do Apelante, situação esta que prejudica e muito a sua imagem, já que, o simples fato de constar uma reclamação em sua ficha, ainda que isente de penalidade, causa prejuízo incalculável à imagem de qualquer cidadão, quiçá de um Juiz de Direito”, disse.
Em 1ª Instância, o juiz Paulo Márcio Soares de Carvalho, da 5ª Vara da Fazenda Pública da Capital, julgou procedente o pedido e condenou o Estado a pagar R$ 85 mil ao juiz.
No reexame do caso pelo Tribunal de Justiça, o Estado alegou que não houve dano moral, pois o promotor de Justiça Douglas Strachicini teria apenas cumprido suas funções. Já o juiz Ricardo Sobrinho pediu que a indenização fosse elevada, pois estaria “aquém” do dano sofrido.
Sentença reformada
O relator do caso no Tribunal de Justiça, desembargador Luiz Carlos da Costa, desconfigurou, um por um, os argumentos que haviam resultado na condenação do Estado a indenizar o juiz.

A preocupação do Promotor de Justiça com a presença do Delegado de Polícia na audiência não era fruto de uma mente fantasiosa, mas sim de compreensível cautela
Quanto à reclamação do promotor sobre o fato de o delegado supostamente possuir “acesso irrestrito” no fórum, o desembargador registrou que, embora o juiz Ricardo Sobrinho tenha alertado os funcionários a não permitir a entrada de ninguém nos espaços privativos, tal providência não foi informada ao promotor Douglas Strachicini.
Luiz Carlos da Costa “abriu um parênteses” e relatou que a indignação do promotor ocorreu após o juiz permitir que o delegado assistisse a uma audiência de um réu que havia, inclusive, sendo atendido por aquele mesmo delegado.
“A preocupação do Promotor de Justiça com a presença do Delegado de Polícia na audiência não era fruto de uma mente fantasiosa, mas sim de compreensível cautela [...] Um mínimo de prudência recomendaria que se inteirasse das razões do Ministério Público, e não simplesmente afirmasse que as audiências são públicas, ausente o segredo de justiça. Também o réu deveria ser consultado sobre a presença do Delegado de Polícia, no sentido de se prevenir qualquer espécie de pressão psicológica”, disse, ao negar ter havido dano moral na situação.
Situação com servidora
O mesmo entendimento foi tomado pelo desembargador em relação à reclamação em que o juiz supostamente teria dito que a servidora Micheli Cano, do MPE, era “fofoqueira”.
Ele registrou que o juiz depôs que, em razão da reclamação do promotor sobre a presença do delegado no fórum, fez uma reunião com os servidores.
Nesta reunião, o juiz contou aos servidores que o promotor teria dito que era a referida servidora que havia lhe passado as informações sobre a presença do delegado.
Para o desembargador, a versão da história contada pelo juiz Ricardo Sobrinho não possui o “mínimo de respaldo probatório”.
“Aliás, seria mesmo incompreensível que o Promotor de Justiça, com relação não muito amistosa com o Magistrado, tenha revelado a este quem seria a fonte das informações”, destacou.
Luiz Carlos da Costa também relatou que o escrivão e o oficial da comarca confirmaram que o juiz suspeitava que a servidora do MPE era quem estava passando informações ao promotor.
Por outro lado, os demais servidores disseram “não se recordar” de o juiz ter mencionado o nome da servidora na reunião, situação classificada pelo desembargador, de forma irônica, como “amnésia coletiva”.
“De qualquer forma, o nome da Servidora do Ministério Público, Micheli, foi citado na reunião com suspeita de não agir com a correção exigida, para não
se fazer uso de adjetivo pouco recomendado, utilizado na linguagem popular [...]Por consequência, à luz do conjunto probatório, não se pode imputar comportamento doloso do Promotor de Justiça, ou com o único intuito de prejudicar o Magistrado, ao requerer a este informações e oficiar à Corregedoria-Geral de Justiça”.
Para Luiz Carlos da Costa, o fato de o promotor ter pedido a apuração da suposta difamação/injúria do juiz contra a servidora “não indica que tenha sido movido por puro deleite de fazer mal ao autor”.
Recusa de atendimento
No caso da reclamação do promotor quanto à recusa do juiz em atendê-lo na residência, foi registrado pelo desembargador que o promotor precisava protocolar um pedido para prorrogar interceptações telefônicas de uma organização criminosa.
Como o pedido ficou pronto após às 18h e era urgente, o promotor ligou para o celular do juiz, que não atendeu. Assim, foi até a casa do magistrado, porém, o juiz Ricardo Sobrinho teria dito que “não iria receber nada” e que “se caso quisesse, mesmo com a urgência, deveria procurar pela escrivã de plantão”.
De acordo com Luiz Carlos da Costa, apesar de haver um cartaz no fórum avisando que as medidas urgentes deveriam ser protocoladas com a escrivã no período de plantão, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional determina que o juiz deve tratar a todos com urbanidade e “atender aos que o procurarem, a qualquer momento, quanto se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência”.

Das picuinhas entre eles, não pode resultar na condenação da sociedade ao pagamento de inexistentes danos morais
“No caso, a providência era de urgência, visto que se cuidava de prorrogação de escuta telefônica em hipótese de crime organizado. Todavia, o Promotor
de Justiça também poderia entrar em contato com a Escrivã; logo, ambos fizeram cavalo de batalha de um assunto de tamanha simplicidade. É provável que a causa primária do desentendimento estivesse ligada aos constantes desentendimentos entre ambos”.
“Das picuinhas entre eles, não pode resultar na condenação da sociedade ao pagamento de inexistentes danos morais, visto que importaria em duplo prejuízo: demora da prestação jurisdicional e pagamento de indenização”, disse Costa.
No que se refere ao uso de expressões ofensivas do promotor em relação ao juiz, o desembargador admitiu que os termos foram inadequados, mas que, por si só, não geram dano moral.
“Há de ser ponderada, outrossim, a existência de forte animosidade entre Magistrado e Promotor de Justiça. Ambos não se entendiam”.
“Em conclusão, desses desentendimentos entre Magistrado e Promotor de Justiça, não verifico a presença de elementos suficientes para evidenciar a existência de ato ilícito a justificar a condenação do Estado de Mato Grosso no pagamento de danos morais”, votou Costa, sendo acompanhado pelo desembargador José Zuquim Nogueira e pela desembargadora Antônia Siqueira Gonçalves Rodrigues.
O juiz chegou a recorrer da decisão sob o argumento de que houve omissão, contradição e obscuridade, mas as teses foram igualmente rejeitadas pela câmara.
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