DA REDAÇÃO
Após dizer a um colega negro que ele só estava saindo do trabalho "porque a princesa Isabel assinou sua carta de alforria", um trabalhador de uma rede varejista de Cuiabá foi dispensado por justa causa. A punição pela suposta "brincadeira" foi mantida pela Justiça do Trabalho de Mato Grosso, que reconheceu a gravidade da injúria racial.
A decisão é do juiz Juliano Girardello, da 5ª Vara do Trabalho de Cuiabá, que considerou o episódio uma grave violação da dignidade humana, incompatível com o ambiente profissional. O magistrado ressaltou que o comentário fez alusão direta ao regime escravocrata, reforçando estigmas históricos e ferindo os direitos fundamentais do colega.
Ao acionar a Justiça pedindo a reversão da dispensa por justa causa, o vendedor alegou perseguição por parte da empresa após questionar condutas de um gerente regional, como o suposto favorecimento de uma funcionária com descontos exclusivos. Segundo ele, após esses episódios, foi orientado a permanecer em casa e só descobriu a dispensa ao acessar sua carteira de trabalho digital. Alegou ainda que a penalidade teria sido arquitetada como retaliação, já que havia manifestado intenção de pedir demissão.
A empresa negou qualquer retaliação e sustentou que a dispensa foi motivada pela prática de injúria racial contra um colega de trabalho negro. Conforme a defesa, em agosto de 2024, o então vendedor dirigiu-se ao colega com a frase: “Só está saindo agora porque a princesa Isabel assinou sua carta de alforria”. A declaração motivou a abertura de uma investigação interna, que resultou em um relatório com depoimentos e áudios confirmando a ofensa. A empresa afirmou ter agido em conformidade com seu código de conduta.
Durante a audiência, o próprio trabalhador admitiu ter feito a afirmação, tentando justificá-la como uma "brincadeira". A versão foi confirmada por uma testemunha, que relatou ter presenciado o comentário de cunho racista direcionado ao colega negro do setor de depósito.
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Para o juiz Juliano Girardello, não houve dúvidas quanto à gravidade da conduta. “O discurso racista, ainda que velado ou justificado como humor, perpetua desigualdades e humilhações históricas, sendo inadmissível em qualquer ambiente, sobretudo no laboral.”
O magistrado concluiu que o episódio configura injúria racial — crime caracterizado por conduta intencionalmente ofensiva à honra, em razão da cor da pele. Ele ressaltou que a suposta “brincadeira”, ao invocar a escravidão como referência jocosa, “remete a um dos períodos mais dolorosos da história do Brasil. A intenção do ofensor não exclui a gravidade da conduta”, frisou.
A sentença destacou ainda que o Brasil é signatário da Convenção Interamericana contra o Racismo, promulgada pelo Decreto nº 10.932/2022, que impõe aos Estados o dever de prevenir, eliminar e punir atos de discriminação. Também foi citado o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010), que proíbe qualquer distinção ou exclusão baseada em raça ou origem étnica.
Racismo recreativo
O juiz também ressaltou que a legislação brasileira equipara a injúria racial ao crime de racismo, tornando-o inafiançável e imprescritível. No caso do chamado "racismo recreativo", a pena pode ser aumentada em um terço, quando praticado com intuito de descontração ou diversão.
Com base nas provas e no conjunto de normas aplicáveis, o juiz concluiu que a atitude do ex-vendedor configura falta grave, conforme previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), atingindo não apenas o trabalhador ofendido, mas todo o ambiente de trabalho. “É crime. A empresa, diante da denúncia e da apuração formal, agiria com censurável omissão caso não aplicasse a justa causa”, afirmou.
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