RODRIGO CYRINEU
Na mitologia grega, Zeus é o rei dos deuses. Figura soberana, imponente. Falo de sua suposta queda, agora, propositadamente. É que, já há algum tempo, metido nos estudos de Direito Público, estava eu deitado em minha cama, com a cabeça repousada no travesseiro, a ler a conhecida obra "Teoria da Constituição", de ninguém menos que o Ministro Carlos Ayres Britto, hoje Presidente da Suprema Corte do Brasil.
Naquela oportunidade, confesso, fiquei fascinado com a comparação que fazia Sua Excelência entre o Poder Constituinte Originário e Deus. Não tenho a obra em mãos, mas, se minha memória não falhar, dizia ele que o Poder Constituinte Originário, tal como Deus, tudo pode, menos deixar de poder. Ou seja, seria o P.C.O. (abreviação que reputo necessária a fim de evitar repetições, lendo-se, em todo caso, Poder Constituinte Originário), fonte ilimitada de poder, podendo, pois, tudo.
A mim me parece, contudo, que o raciocínio é falho, data máxima vênia. A soberania absoluta do P.C.O., sob a ótica do Direito Internacional Público, não passa de um raciocínio prisco, ultrapassado e sem concatenação com a evolução do pensamento jurídico contemporâneo, máxime em razão da vivenciada "pós-modernidade". A defender-se tal posicionamento, encampado na obra de Ayres Britto, estaria-se a adotar, talvez de forma involuntária, a teoria do monismo nacionalista (isso sem cogitar a do dualismo, que se reputa absolutamente inadmissível hodiernamente), isto no que atine ao entrechoque do Direito Doméstico face ao Internacional.
Não é de hoje que o monismo internacionalista vem sendo reconhecido como a concepção jurídica mais consentânea com a ideia de Ordem Jurídica Internacional, porquanto consagra a primazia do direito das gentes em relação ao Direito Interno de cada Estado, propiciando a conformidade e a regularidade do ordenamento internacional, evitando contradições pontuais no Globo. É dizer: como fundamento de validade dos Ordenamentos Internos, o Direito Internacional Público (Tratados e Costumes) encontra-se em posição de superioridade, pois, deveras, é ele, D.I.P., quem dita as regras do jogo no Cenário Mundial, devendo os Estados-Membros da ONU, então, conformar suas legislações domésticas, aí incluídas as próprias constituições, com as normas internacionais, visto que só assim será possível o estabelecimento de um padrão mínimo e exigível de respeito aos ditames internacionais, evitando o subjetivismo dos Estados, a exemplo do Direito Chinês.
Nessa linha de intelecção, portanto, é inconcebível falar-se em onipotência do P.C.O. dos Estados-Membros. Aliás, como acertadamente obtempera Valério Mazzuoli, a sua soberania só pode ser relativa. Qual seria o motivo dessa relatividade da soberania do Constituinte Originário? A resposta é simples, embora necessite de fundamentação relativamente pormenorizada.
Pois bem.
Perdoem-me pelo excesso, mas é que, convenhamos, os Estados Nacionais trocam de constituições assim como nós trocamos de roupa diariamente. Sem sairmos da terrinha, vemos que o Brasil teve, ao longo de sua existência, e até hoje, 7 (sete) constituições, sem incluir a falsa constituição de 69. Em menos de 200 (duzentos) anos, 7 (sete) Leis Fundamentais.
A feitura de uma Constituição, nada obstante o relevante significado na ordem jurídica interna, não pode ter o efeito de burlar os compromissos internacionais assumidos pelo Estado-Membro. É por isso que o P.C.O. possui soberania relativa, porquanto em que pese ser-lhe lícito romper com toda a normatização prevista no Pacto Fundante anterior, não poderá se olvidar das obrigações que assumiu enquanto membro da ONU, e também das demais organizações internacionais setoriais, a exemplo da OEA. Pensar-se de forma contrária seria o mesmo que assumir a posição de irresponsáveis, o que vai de encontro com o postulado da responsabilidade internacional dos Estados, que, em verdade, parece ser o próprio fundamento de justificação desse raciocínio.
Exemplificando: se o Brasil se obriga, em determinado documento internacional, a só aplicar a pena de morte em caso de guerra declarada, ainda que se faça uma nova Constituição Federal, não poderá, v.g., prever-se a pena de morte em caso de tráfico de drogas ou de estupro de vulnerável, por mais asquerosas que sejam essas condutas ilícitas.
Exemplificando, novamente: se a nova Constituição é menos protetiva dos Direitos Humanos, os Tratados Internacionais que os contemplam com mais ênfase, indubitavelmente, terão aplicabilidade automática e imediata no território nacional, nada obstante previsões contrárias no Texto Magno, porquanto o Direito Internacional Público, na atualidade, posiciona-se em favor da supremacia dos Direitos Humanos.
É o que Mazzuoli entendeu por bem em chamar de "monismo internacionalista dialógico", o qual traz consigo o princípio internacional "pro homine", que reclama a aplicação da lei mais favorável aos direitos humanos, a fim de otimizar, auspiciosamente, o postulado da dignidade da pessoa humana.
Vê-se, portanto, que a ideia de Poder Constituinte Originário como um Deus, que tudo pode, é desacertada. Deus é um só, o criador do Universo, e ponto. Devemos nos desgarrar dessa ultrapassada teimosia de entender a soberania estatal como absoluta. A Sociedade Jurídica Internacional deve caminhar de mãos dadas para a prevalência da paz e dos direitos humanos, rechaçando qualquer medida autoritária, ainda que sob a roupagem de uma constituição, que vise conspurcar essa auspiciosa pretensão.
Data máxima vênia, reitero.
Rodrigo Cyrineu - é advogado
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