RODRIGO CYRINEU
Não bastasse o movimento moralizador “Ficha Limpa”, o qual, repito, é embasado na Lei Complementar nº. 135/2010 que é multiplamente inconstitucional, criou-se, agora, a figura do candidato “Ficha Semi-Limpa” ou “sob condição”.
É isso mesmo: candidatos amparados por decisões liminares suspensivas de inelegibilidades são tidos como “personas non gratas” por determinada parcela daqueles que militam na área eleitoral, a ponto de haver impugnações para que seu registro seja deferido de forma condicional, isto é, tornar-se-á definitivo apenas se a liminar não for posteriormente cassada.
Tirando a questão estritamente jurídica que deve ser relegada para os embates processuais, essa nefasta medida tem efeitos extrajurídicos sensíveis e que merecem a devida atenção do Judiciário Eleitoral, a saber: a utilização do processo como forma de minar candidaturas.
Veja-se a que ponto se chega: o candidato foi cassado, e declarado inelegível, em processo oriundo de eleições anteriores. Recorreu e o Tribunal hierarquicamente superior, vendo plausibilidade jurídica nas suas alegações, suspende a inelegibilidade decretada por órgão colegiado de menor escalão.
No transcorrer disso, isto é, até a análise do mérito do recurso pela Corte Superior, o candidato, alvo aparentemente de um erro judiciário, deve suportar, sozinho, o equívoco do Tribunal que o condenou, tendo que receber a pecha de “candidato sob condição” ou “candidato sub judice”, arcando com a demora decorrente do julgamento de seu recurso. Ou seja: vítima de um erro judicial, e quem atesta isso é, por exemplo, o(a) Ministro(a) Relator(a) que lhe concede a liminar no C. TSE, devendo ainda suportar sozinho a demora judicial decorrente de problemas de gestão exclusivos do Judiciário, algo verdadeiramente inconcebível.
Tenho muito medo de nos embriagarmos com essa sede insana de Justiça. Daí que não se revela em exagero, ao ponto, trazer a lume o que disse certa vez Ruy Barbosa ao colega Evaristo de Morais, palavras que ficaram registradas no futuro livro intitulado “O dever do advogado”:
“O furor dos partidos tem posto muitas vezes os seus adversários fora da lei. Mas, perante a humanidade, perante o cristianismo, perante os direitos dos povos civilizados, perante as normas fundamentais do nosso regímen, ninguém, por mais bárbaros que sejam os seus atos, decai do abrigo da legalidade. Todos se acham sob a proteção das leis, que, para os acusados, assenta na faculdade absoluta de combaterem a acusação, articularem a defesa, e exigirem a fidelidade à ordem processual. Esta incumbência, a tradição jurídica das mais antigas civilizações a reservou sempre ao ministério do advogado. A este, pois, releva honrá-lo, não só arrebatando à perseguição os inocentes, mas reivindicando, no julgamento dos criminosos, a lealdade às garantias legais, a equidade, imparcialidade, a humanidade”. (p. 36-37)
É preciso deixar o eleitor decidir; é necessário respeitar a soberania popular, dentro de um processo igualitário, sem perseguições, sem rótulos, sem malícia. Já dizia Joaquim Francisco de Assis Brasil, idealizador da Justiça Eleitoral e “pai” do Código Eleitoral de 1932:
“(...) o que o Brasil precisa é de representação e de Justiça. Possuindo essas duas coisas, em me contentaria mesmo com uma Constituição que não tivesse senão essas duas palavras, ligadas pela humilde conjunção; possuindo essas duas coisas, não sei o que mais falta. As câmaras, as eleições de autoridade executiva, tudo enfim em que o país fosse consultado havia de representar legitimamente a vontade nacional. Esta vontade pode coroar coisas que não sejam boas – a nação também se corrige, tem também as suas nevroses, os seus momentos, suas hesitações, seus emportements [explosões], mas é preciso deixar que ela viva, segundo deva viver. O caso da nação é o mesmo de cada um de nós. Que seria de cada um de nós se, chegados à idade em que o Código Civil nos julga maduros para fazer as nossas asneiras, o nosso papai dissesse: “Não, o menino não pode fazer esses negócios. Precisa praticar mais”. Como queriam os monarquistas, como queria o senhor Washington Luís a respeito do seu sistema centralizador, tirânico, de interpretação do governo presidencial. Não; na água é se aprende a nadar. É no exercício da função que o indivíduo adquire idoneidade para essa mesma função. É, pois, preciso que a nação tenha liberdade, não como querem os nefelibatas e sonhadores, para fazer os seus governos de anjos. Quero que a nação tenha liberdade para fazer os seus maus governos, porque é pelo preço de fazer os maus negócios e de dar os maus passos que os homens e os povos aprendem a dar bons e a ser dignos de sua liberdade. A representação verdadeira é uma necessidade; não para fazer bom governo, mas para tornar o povo apto a fazer um bom governo. Resumindo mais ainda: para que cada povo tenha o governo que merece – porque nada mais injusto do que dar ao povo o governo que ele não merece”. (In Joaquim Franciso de Assis Brasil: uma antologia política. CRISTINA BUARQUE DE HOLLANDA, organização introdução e notas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011, pp. 425-6)
Termino acudindo-me, vez outra, da sabedoria de Assis Brasil: “Sou desses desgraçados homens que não podem ocultar o seu pensamento porque tem tido, não sei se a indiscrição ou se o valor, de o haver posto sempre em letra de fôrma”, e diria eu, contextualizando, “em letras garrafais”.
Rodrigo Cyrineu é advogado.
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