CARLOS ALBERTO ALVES DA ROCHA
E MARCOS MACHADO
No Direito, assim como em outras áreas do conhecimento humano, desenvolve-se uma linguagem própria, na qual se guardam palavras e expressões que possuem acepções específicas, várias delas polissémicas. Há uma associação indissolúvel e essencial entre o Direito e a linguagem. Nas atividades vinculadas ou derivadas da ciência jurídica, o vocábulo é matéria-prima.
Clareza, concisão, precisão e objectividade são fundamentais à comunicação jurídica. Não obstante, a grande crítica social - e procedente - envolve a produção de petições e sentenças, as quais, de modo geral, são escritas de forma ou com uso de palavras que se tornam incompreensíveis àquele que não possui formação jurídica.
O excesso de linguagem jurídica resulta em verdadeira barreira entre o mundo do Direito e as pessoas comuns, em potencial usuários da prestação jurisdicional. Nesse processo de violência simbólica que "protege" o mundo jurídico do acesso de grande parte da população, nada é tão eficaz quanto à linguagem jurídica (Damião, Regina T. e Henriques, Antonio. Curso de Português Jurídico – São Paulo: Atlas, 2004. Sader Emir. Entendimento de Sentença. Jornal A Folha de S. Paulo, 17.11.2006).
Para agravar esse cenário, o excesso de argumentação, a subjetividade de profissionais do Direito e a utilização de sofismas conceberam o juridiquês, neologismo que designa o uso desnecessário de jargões ou brocardos em latim ou grego, parágrafos com frases repetitivas, reproduções das mesmas ideias com inversões da ordem explicativa e conjugação de verbos no gerúndio, condicionais, apostos e outros.
Obviamente, não se pode resistir ao uso de determinadas expressões latinas, seja pela raiz romana do Direito Brasileiro, pelo propósito de encerramento de uma fundamentação ou explicação, nem tampouco à utilização de expressões em latim ou em outras línguas estrangeiras em situações concretas de interpretações hermenêuticas comparadas ou mesmo como fonte de integração de pensamentos jurídicos.
Nesse contexto, apresenta-se à discussão uma expressão que vem sendo utilizada sucessivamente em Tribunais: juiz de piso. Recorre-se ao termo para referir-se ou identificar o juiz de primeiro grau de jurisdição, ou seja, no âmbito da Justiça estadual, o juiz de Direito, aquele que irá receber e julgar a demanda levada ao Fórum de uma Comarca.
O termo piso, em sua origem, nos reporta a todo revestimento de solo sobre o qual se pode caminhar, como são os degraus de uma escada. É ainda um modo de andar, um terreno ou lugar, pavimento e chão (http://pt.wikipedia.org/wiki/Piso e http://www.dicio.com.br/piso). Refere-se também ao preço ou valor mais baixo de um produto e até de faixas salariais. (http://br.significado.de/piso).
Ao admitir a existência de um juiz de piso, como denominar-se-ia o juiz de segundo grau de jurisdição, aquele que atua nos Tribunais: Juiz de teto? Juiz de cima? Juiz do cume? (http://www.amma.com.br/artigos~2,748,,,juiz-de-base-que-base - 12.11.2007).
A língua portuguesa já relaciona adjetivos ao substantivo juiz, como autoridade pública investida com poder de julgar conflitos de interesse que são submetidos à sua apreciação. A recordar: juiz de Direito ou juiz togado, magistrado que julga, em uma Comarca, segundo as provas dos autos; juiz de fato, o mesmo que jurado ou membro do júri; juiz relator, o que funciona junto a um Tribunal para relatar o feito; juiz de paz, magistrado eletivo a quem competia o julgamento das causas de pequena relevância (desavenças, cobranças de pequeno valor, realização de casamento), da alçada de um juízo de paz ou juízo conciliatório; juiz de primeira instância, aquele que tem competência legal para tomar conhecimento das causas dos litigantes e julgá-las por sentença (Aurélio, 2014). Há ainda juiz singular, juiz monocrático, juiz da causa, juiz natural (Plácido e Silva, 1988).
Na perspectiva do cidadão, para quem a Justiça presta seus serviços, o juiz é aquele que "olhará nos seus olhos quando ele tiver de comparecer a uma instrução processual e que, nesse momento, o flagrará em sua condição de vilão ou inocente. A força do Judiciário começa no juiz local, que freqüenta os mesmos supermercados e cinemas da comunidade. Ele tem de ser forte para que o próprio Judiciário seja considerado um Poder forte e conte com o respeito popular” (Roberto Basilone Leite leciona: O Direito dos Tribunais: Papel, Importância Social e Limites em Face do Princípio da Independência do Juiz. Revista LTR legislação do trabalho, v. 66, n. 01, p.24-40, jan. 2002).
A liberdade intelectual sobre a aplicação do Direito compete às instâncias judiciais de primeiro grau de jurisdição. A evolução natural da jurisprudência, ao sabor de influxos sociais e razoabilidade econômica, é inaugurada pelo juiz, em uma sentença.
Exemplo mais evidente envolve as ações possessórias, nas quais se mostra ainda mais conveniente a adoção do princípio da identidade física do juiz, justamente porque a convicção sobre a matéria pressupõe a identificação das partes e a formação de livre convencimento à luz da oralidade e da observação comum, fornecidas pela observação ordinária.
A propósito, destaca-se precedente jurisprudencial que encarta uma regra axiológica de confiança do Tribunal no juiz, assim sintetizado: “Havendo dúvidas acerca da questão de fato discutida nos autos, é de se privilegiar a proximidade do juiz com a prova, prestigiando as impressões colhidas” (TJMT - 1ª Câmara Cível - RAI nº 107623/2010 - Rel. Des. Orlando Perri).
O juiz de Direito é quem detém a plenitude da jurisdição. Se o juiz detém a competência para julgar a pretensão, o Tribunal não pode conhecê-la diretamente sob pena de violação ao princípio do duplo grau de jurisdição, por supressão de instância. A este, cabe o reexame da decisão ou sentença prolatada pelo juiz, a correção de eventual erro judicial, a desconstituição de ilegalidade ou abuso de direito possivelmente cometido no julgamento, desde que interposto o recurso cabível, impetrado mandado de segurança ou habeas corpus, conforme a hipótese concreta.
Logo não surge correta e, muito menos esclarecedora, a denominação de “juiz de piso" para referir-se àquele que possui o papel principal no sistema processual brasileiro.
Carlos Alberto Alves da Rocha e Marcos Machado são desembargadores do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT)
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