*LENINE PÓVOAS
No ano de 1988, com o advento da Constituição Cidadã, criaram-se inúmeros mecanismos com o nítido objetivo de se perseguir os propósitos da nova estrutura política vindicada pelo clamor popular: o Estado Democrático de Direito. A Carta Magna foi elaborada num contexto pós-ditadura, ficando clarividente em seus artigos a vontade do legislador em afastar qualquer tentativa de retorno de governos dessa natureza.
Com o novo modelo Estatal passou a ser possível responsabilizar os agentes públicos por seus atos, sendo que para tanto é imprescindível o respeito ao devido processo legal, assegurando-se a todos o direito de se contraporem e defenderem-se de quaisquer acusações.
Afrontar tais garantias nos remeteria à práticas ditatoriais, mesmo porque ceifaria a possibilidade réus se oporem às acusações que lhes são dirigidas, inviabilizando o exercício da cláusula do contraditório e da ampla defesa, não se olvidando que decisões carentes de fundamentação passaram a ser consideradas nulas por inviabilizar e até mesmo segregar o direito de se recorrer delas, haja vista serem desconhecidas as razões de suas eventuais condenações.
Noutro giro, denúncias “genéricas” devem ser vistas como inadmissíveis, mesmo porque delas são impossíveis de se defender, exatamente pelos seus fundamentos serem desconhecidos. Tanto é assim que, em Atenas, quando Sócrates foi a julgamento, as acusações eram de crimes vagos, mesmo porque os juízes e os jurados sabiam que era impossível argumentar com aquele homem e dessa forma seria mais fácil condena-lo.
É baseado nisto que as condenações judiciais de agentes políticos em virtude de ofensa a “moralidade administrativa” tem sido visto com muita preocupação. Esse valor constitucional merece maiores cuidados no momento de sua aplicabilidade.
Tem-se a impressão de que este princípio diz respeito a moral comum, o que não deve ser aceito. A “moral comum” é algo extremamente subjetivo. O que é moral para uns, pode não ser para outros. O que é moral em uma determinada região, pode não ser em outra e por aí vai.
No Estado Democrático de Direito o princípio da moralidade não se refere a “moral comum”, salvo se fosse possível afirmar que existe um entendimento moral unânime, sem quaisquer divergências, o que é absolutamente impossível devido às diferenças culturais.
Caso assim não fosse, criar-se-ia uma verdadeira cortina de fumaça com enorme insegurança jurídica, situações essas que não coadunam com o Estado Democrático de Direito, tendo em vista que o que pode ser moral para o agente político, pode não ser para o membro do Ministério Público, para o Magistrado ou para qualquer outro cidadão, e vice-versa.
As condutas éticas e morais são aquelas ditas pelo próprio ordenamento jurídico, e não pela conveniência daquele que pensa dessa ou daquela forma. A moralidade administrativa é aquela positivada no ordenamento pátrio.
Destarte, ao acusar ou condenar uma pessoa por ofensa à “moralidade administrativa” é necessário realizar hermenêutica vinculada aos verdadeiros propósitos da legislação, sobretudo por se tratar conceito excessivamente aberto e subjetivo, com grande probabilidade de haver interpretação errônea e/ou sem a dosagem necessária para configurar o objetivo que a lei estima alcançar.
A possibilidade de interpretação equivocada pode aumentar ainda mais com a pressão midiática, popular ou convicções íntimas das pessoas, mesmo porque, sociologicamente, a população brasileira sempre carregou consigo o gosto amargo da exploração aética do Poder Público perante a sociedade, o que acarreta em alguns prejuízos jurídicos.
O objetivo da legislação é sancionar quem age de má-fé para praticar atos contrários ao ordenamento jurídico, e não quem contraria as convicções íntimas deste ou daquele. O que determina se um ato fere ou não a moralidade administrativa é a Lei, e não a moral pessoal, mesmo porque, caso fosse assim, isso nos deixaria numa insegurança jurídica sem igual.
Cabe registrar que o que molda a moral de cada cidadão são os seus valores culturais, os quais, por sua vez, são edificados com base em sua religião, ideologia política, filosófica, compreensão histórica, situação geográfica, posturas familiares, etc. Por exemplo, se casar com mais de uma pessoa no Brasil é visto como algo imoral, inaceitável e condenável. Diferentemente disso, na Arábia, a poligamia é moral, aceitável e louvável. Perceba que a “moral comum” nos faz cair em um limbo, até porque cada um tem a sua conforme as suas crenças.
A religião exerce forte influência nesse aspecto. Já pensou se o promotor for hinduísta, o magistrado ateu e o acusado cristão? Teriam eles a mesma moral?! É bem provável que não, por isso o pensar e o agir seriam diferentes. Portanto, a “moral infringida” que enseja um processo é aquela que está juridicizada, ou seja, a que encontra-se no ordenamento jurídico, e não a pessoal.
Acusações e condenações efetivadas com fundamento na “ofensa a moralidade administrativa” devem discriminar a má-fé com a devida demonstração da vontade do agente político em transgredir a legislação, sob pena de ficarmos a mercê das vontades e crenças pessoais de alguns poucos, o que é inimaginável em uma República.
Salvaguardar os valores concebidos na Constituição e esclarecer para a população que o devido processo legal representa um ganho para a sociedade são questões indispensáveis para o nascimento de um amanhã promissor.
LENINE PÓVOAS é advogado, especialista em Direito Administrativo pela PUC/SP com monografia em “A Constitucionalização da Improbidade Administrativa”.
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