MARCELO SENISE
O Supremo Tribunal Federal (STF) julga neste momento uma das decisões mais sensíveis e perigosas para a democracia brasileira desde a redemocratização: a possível revogação prática do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Em discussão, está a responsabilização das plataformas digitais por conteúdos gerados por terceiros, mesmo sem decisão judicial prévia. Na essência, discute-se se o Brasil continuará sendo uma democracia de liberdades ou se passará a conviver com uma censura prévia velada, disfarçada de regulação.
A Constituição Federal de 1988 é clara e objetiva: nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação. E mais: veda expressamente a censura prévia. O artigo 19 do Marco Civil não é um obstáculo à responsabilização posterior por danos causados — ele apenas impede que plataformas sejam compelidas a remover conteúdos sem que um juiz analise o caso. Ou seja, garante o devido processo legal. Ao colocar esse artigo sob julgamento, o STF não está apenas interpretando a lei. Está, na prática, assumindo para si o poder de redesenhar os limites da liberdade de expressão no país, sem passar pelo Parlamento, sem ouvir a sociedade em sua totalidade e sem respeitar o pacto federativo que dá ao Legislativo a prerrogativa de legislar.
Não se trata aqui de defender a desinformação, o discurso de ódio ou a omissão do Estado diante de crimes praticados online. Trata-se de reafirmar que nenhuma causa, por mais nobre que se anuncie, pode justificar a ruptura com o Estado de Direito. Quando o Supremo Tribunal passa a permitir que conteúdos sejam removidos com base em notificações extrajudiciais, sem o crivo de um juiz e sem o direito ao contraditório, ele abre uma porta sombria: a de transformar plataformas privadas em agentes de censura — não por convicção, mas por medo. O medo da multa, da sanção, da retaliação institucional. Cria-se, assim, um ambiente de autocensura. O que se cala, não por consciência, mas por coerção.
É importante compreender que o que está em jogo não é apenas uma cláusula de uma lei infraconstitucional. O que se julga é o próprio conceito de liberdade de expressão como pilar civilizatório. Porque onde não há liberdade para errar, para criticar, para provocar, tampouco haverá espaço para pensar. A censura prévia, ainda que disfarçada de proteção contra abusos, sempre será mais perigosa do que os próprios abusos que ela alega combater.
Ao propor que as plataformas sejam responsabilizadas por não agirem “com diligência”, o STF introduz um conceito vago, subjetivo, e altamente manipulável: o chamado “dever de cuidado”. O que parece uma ideia razoável — e talvez até seja no campo da responsabilidade civil tradicional — se torna um instrumento de arbítrio no universo da comunicação digital, onde os significados, contextos e intenções são complexos e dinâmicos. Delegar a uma empresa privada, pressionada por decisões judiciais instáveis, o papel de filtrar o debate público é abdicar da liberdade. É transferir para corporações, sob tutela estatal, a chave daquilo que pode ou não ser dito.
O STF ultrapassa ainda outro limite gravíssimo: o da separação dos poderes. Ao reinterpretar o Marco Civil, ignorando seu texto original e a vontade do legislador, o Supremo age como legislador positivo, substituindo o Congresso Nacional. Em nome de proteger a democracia, rompe com seus fundamentos. Ao justificar o ativismo como resposta à “omissão do Legislativo”, legitima o desequilíbrio institucional como norma, e não como exceção. Mas a democracia não é compatível com esse tipo de “vanguardismo jurídico”. O Judiciário não pode se tornar autor de leis que o povo nunca votou.
O Brasil precisa debater com seriedade os riscos da desinformação e a responsabilidade das plataformas. Mas esse debate deve ocorrer onde a Constituição determina: no Congresso Nacional, com transparência, pluralidade e legitimidade popular. Quando o STF se antecipa a esse processo e impõe interpretações que expandem seu poder sobre o que pode ou não circular na esfera pública digital, está minando a própria confiança nas instituições. E onde não há confiança, não há estabilidade. Onde não há equilíbrio, não há liberdade duradoura.
O julgamento do STF sobre as redes sociais é mais do que um ato jurídico: é um teste de resistência institucional. Se a Corte optar por relativizar a liberdade em nome da segurança, estará reescrevendo a Constituição sem tinta e sem voto. Estará inaugurando um novo paradigma — não o da regulação legítima, mas o do controle arbitrário.
A história, invariavelmente, é dura com aqueles que traem os princípios em nome de pretextos. Que o Supremo saiba disso. E que o Brasil esteja atento.
Marcelo Senise: Presidente do IRIA - Instituto Brasileiro para a Regulação da Inteligência Artificial
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