ÚLTIMA INSTÂNCIA
O MPT (Ministério Público do Trabalho) quer responsabilizar a construtora MRV, em Americana (SP) e São Carlos (SP), pelo descumprimento das normas de segurança e medicina do trabalho de terceirizados. Para isso, o órgão ingressou com ações civis públicas que pedem R$ 10 milhões de multa por colocar trabalhadores em condições análogas as de escravo.
No processo ajuizado em Americana, o MPT pede a condenação da empresa pelos danos causados a trabalhadores, no empreendimento “Beach Park”, em fevereiro de 2011. Em São Carlos, os procuradores pedem R$ 1 milhão para reparar os danos causados aos operários do condomínio “Spazio Monte Vernon”, cujo ambiente de trabalho foi flagrado em condições precárias por auditores fiscais em dezembro de 2010.
No primeiro processo, o MPT fundamenta a precarização do trabalho decorrente da terceirização dos serviços nas obras, inclusive daqueles considerados essenciais à atividade econômica, ou atividade-fim, como de alvenaria. Segundo o inquérito, a MRV utiliza-se de “empreiteiras” para realizar a mera intermediação de mão de obra. Com isso, tenta-se a transferência da responsabilidade trabalhista às pequenas empresas criadas por ex-operários, que não possuem capacidade econômico-financeira para mantê-las, o que resulta em não pagamento de salários, alojamentos e moradias fora dos padrões legais, aliciamento de trabalhadores, entre outras irregularidades graves.
O trecho do relatório, citado nos autos do processo, relata o que foi encontrado no canteiro de obras: “quando visitamos uma obra da MRV, são encontrados mais ou menos 70 trabalhadores dentre os quais apenas 3 ou 4 da MRV. Ou seja, ela terceiriza completamente a sua atividade fim para empresas totalmente improvisadas, com empresários despreparados e sem o mínimo de conhecimento administrativo. Estamos cansados de autuar a MRV e não conseguir mudar a política desta que é a maior construtora de São Paulo, em número de obras”.
Segundo estatística levantada pela Gerência Regional do Trabalho de Campinas, responsável pelo resgate dos trabalhadores de Americana, a MRV foi alvo de cerca de 70 autuações entre 2007 e 2010, quase na totalidade por descumprimento de normas de saúde e segurança do trabalho.
Mas foi no caso de Americana que se chegou à verdadeira dimensão da precariedade instalada pelo sistema de terceirização de atividade-fim. O inquérito instaurado pelo MPT, com a incumbência inicial de se investigar as condições de alojamento de migrantes nordestinos, acabou por descortinar o esquema de intermediação de trabalhadores por meio de prestadoras de serviços com absoluta ausência de austeridade técnica, administrativa e econômica.
Em depoimentos, os “empreiteiros” admitem terem constituído empresa a pedido dos engenheiros da construtora, sendo que muitos deles são ex-empregados da MRV, sem qualquer experiência administrativa ou capital para gerir uma pessoa jurídica. Segundo os “empreiteiros”, o cadastro das empresas é enviado a Belo Horizonte, onde fica a matriz da empresa, para que se obtenha a aprovação para a contratação da “empreiteira”. A partir daí, o dono da pequena empresa aciona seus contatos e busca trabalhadores no interior do Nordeste, que são arregimentados com falsas promessas de salário, moradia e condições de trabalho.
A subordinação à construtora é clara. De acordo com o relatado pelo preposto de uma das “empreiteiras”, toda a rotina de execuções é pré-determinada e o cumprimento das tarefas pré-estabelecidas é fiscalizado pela direção da MRV. Ainda há a subordinação hierárquica, com o engenheiro da construtora dando ordens aos encarregados das terceiras.
“A subordinação econômica das “empreiteiras” em face da ré é elevada à máxima potência pelo uso de repugnante artifício de assinatura de documento de distrato com data em branco, deixando ao exclusivo talante da contratante o destino da continuidade da prestação de serviços”, explicam os procuradores.
Trabalho escravo
No caso de redução de trabalhadores à condição análoga à de escravo flagrado no condomínio “Beach Park”, que recebe verbas federais do programa “Minha Casa, Minha Vida”, os migrantes dos estados de Alagoas, Bahia e Maranhão, contratados diretamente pelas prestadoras M.A Construções e Cardoso e Xavier Construção Civil, dividiam-se em duas moradias extremamente precárias. Ao estilo geminado, as casas encontravam-se superlotadas e sem qualquer ventilação. Trabalhadores dormiam no chão, inclusive na cozinha. A falta de higiene era notável.
“As situações encontradas enquadram-se nas hipóteses de degradação do ambiente de trabalho, do local de alojamento, e de restrição de locomoção por meio de retenção de CTPS e não pagamento de salário, configurando trabalho análogo ao de escravo”, afirmam os auditores de Campinas em seu relatório fiscal.
Como resultado da operação, além do resgate de 63 trabalhadores pelo MTE, o MPT firmou Termo de Ajuste de Conduta (TAC), com o objetivo de tutelar a situação dos escravizados, garantindo a rescisão dos contratos e a condução deles às cidades de origem.
“A situação encontrada não deixa margem de dúvida sobre a ilicitude da terceirização perpetrada pela ré, facilmente percebida pela incidência concomitante de algumas circunstâncias, tais como ausência de delegação de serviços especializados, subordinação direta e idoneidade econômica dos terceirizados” afirmam os procuradores.
A situação flagrada em Americana prova os fundamentos da ação: o “empreiteiro” responsável pela terceirizada Cardoso & Xavier havia fugido, deixando para trás dezenas de trabalhadores sem salário e sem alimentação. Sua condição financeira os impedia de voltar para as cidades de origem.
Além da degradância observada nos alojamentos e nas relações precárias de trabalho, a fiscalização e o MPT flagraram também o descumprimento de quase a totalidade das normas de segurança e saúde do trabalho, com a aplicação de 44 multas pelos auditores.
Atividade-fim
Os fiscais de Campinas, em suas conclusões, põem em cheque o modus operandi da MRV, espelhando os objetos sociais da construtora e das prestadoras contratadas para as obras. “O objeto social de ambas as terceiras é ‘construção de edifícios’ (...). A MRV tem por objeto ‘construção e comercialização de imóveis próprios’. Há, pois, coincidência de atividade econômica dessas três empresas”, afirmam.
O relatório prossegue: “nota-se, da análise dos depoimentos, da comparação dos contratos sociais e da composição da mão-de-obra, que a MRV optou pela ampla terceirização do trabalho braçal, indispensável para a consecução de seu objeto social de construção de edifícios, mantendo em seus quadros apenas os profissionais administrativos e com poderes de mando e coordenação”.
Precariedade em São Carlos
Em São Carlos, nas obras do condomínio “Spazio Monte Vernon”, a fiscalização flagrou um canteiro desorganizado, com detritos acumulados e desrespeito às normas de segurança e saúde do trabalho.
Falta de proteção contra quedas, escadas de mão apoiadas em vãos da laje, rampas de acesso sobre valas e alojamentos improvisados para terceirizados dentro das obras. Estas são apenas algumas das irregularidades constatadas pela Gerência Regional do Trabalho de São Carlos em ação fiscal, na qual ficaram documentadas as péssimas condições de conservação e higiene de colchões e o não fornecimento de armários, roupas de cama e travesseiros.
Em audiência, o MPT propôs assinatura de Termo de Ajuste de Conduta, mas houve recusa da construtora, que demonstrou a intenção de dificultar a atuação dos procuradores, limitando-se a simplesmente apontar as obras ativas, sem seus endereços.
Os pedidos judiciais
Além dos pedidos indenizatórios, que atingem o montante de R$ 10 milhões em Americana e R$ 1 milhão em São Carlos, calculado sobre os danos causados em cada caso, as ações pedem o cumprimento integral da NR-18 nos canteiros da MRV ativos nas circunscrições dos dois municípios. As indenizações serão destinadas ao FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador).
Isso inclui o fornecimento de equipamentos de proteção, adoção de medidas contra quedas e de proteção elétrica, implementação de programas de saúde e segurança, disponibilização de alojamentos decentes e de áreas de vivência de acordo com a lei, entre outros. Na ação de Americana, são cerca de 50 pedidos; em São Carlos, o total é de 16.
Os procuradores ainda pedem, na ação ajuizada em Americana, que a sentença proferida pela justiça seja publicada nas duas principais emissoras da região e nos dois jornais locais de maior circulação.
Notificação ao Governo Federal
Na ação contra a MRV ajuizada em Americana, os procuradores pedem a expedição de ofícios ao Ministério das Cidades e às superintendências regionais e nacionais da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil, para cientificá-los do teor da sentença para tomar eventuais providências sobre a destinação das verbas para o programa “Minha Casa, Minha Vida”.
O objetivo dos procuradores é o de buscar meios para a proteção do erário público, “considerando haver destinação de dinheiro público que, em última instância, financia obras realizadas pela ré dentro do programa, especialmente aquela em que averiguados os fatos ora tratados”.
Inclusão na “lista suja”
Segundo os auditores fiscais de Campinas, o nome da MRV já foi remetido à Brasília para inclusão da empresa na “lista suja” do trabalho escravo, mantida pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Trata-se de um cadastro de empregadores que exploram mão de mão de obra em condições subumanas.
A “lista suja” é reconhecida internacionalmente como um dos principais instrumentos no combate ao crime de trabalho escravo no Brasil. A pressão decorrente da inclusão no cadastro se dá por parte da opinião pública e da repressão econômica.
Após a inclusão do nome do infrator no cadastro, instituições federais, como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, o Basa (Banco da Amazônia), o BNB (Banco do Nordeste) e o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) suspendem a contratação de financiamentos e o acesso ao crédito. Bancos privados também estão proibidos de conceder crédito aos relacionados na lista. Quem é nela inserido também é submetido a restrições comerciais e outros tipos de bloqueio de negócios por parte das empresas signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.
O nome da pessoa física ou jurídica incluída permanece na relação por pelo menos dois anos. Durante esse período, o empregador deve garantir que regularizou os problemas e quitou suas pendências com o governo e os trabalhadores. Caso contrário, permanece na lista.
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