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OPINIÃO Quarta-feira, 11 de Setembro de 2024, 08:15 - A | A

11 de Setembro de 2024, 08h:15 - A | A

OPINIÃO / CARLA REITA FARIA LEAL

Caso Sônia Maria de Jesus e as perversas nuances do trabalho escravo contemporâneo no âmbito doméstico

CARLA REITA FARIA LEAL E AMANDA CAMPOS DE ALMEIDA



Dentre os inúmeros casos de escravidão contemporânea que tomaram os noticiários nos últimos anos, um em questão ainda gera preocupação pelos desdobramentos posteriores ao resgate. É o caso de Sônia Maria de Jesus, mulher negra, analfabeta e surda que foi escravizada durante quatro décadas pelo desembargador Jorge Luiz de Borba e sua esposa Ana Cristina Gayotto de Borba em Florianópolis, Santa Catarina.

Sônia, que hoje tem 50 anos, nasceu na Zona Oeste de São Paulo e teve a sua guarda temporariamente confiada à psicóloga Maria Leonor Gayotto em 1982, quando ainda era uma criança. Sua mãe biológica, Ana Deolina de Jesus, pediu à psicóloga que abrigasse a filha para livrá-la das agressões físicas cometidas pelo pai. Todavia, o que era para durar apenas alguns dias acabou se tornando definitivo quando Deolina perdeu contato com a filha e, após anos tentando reencontrá-la, faleceu em 2016 sem saber do seu paradeiro.

A investigação que resultou na libertação de Sônia teve início a partir de denúncia anônima que relatou detalhes sobre a situação análoga à escravidão vivenciada pela vítima. Assim, em junho de 2023, um grupo formado por membros do Ministério Público do Trabalho, da Defensoria Pública da União, da Polícia Federal e da Auditoria-Fiscal do Trabalho realizou diligências na casa da família Gayotto de Borba e, ao confirmar a denúncia, procedeu ao resgate e à transferência de Sônia a uma unidade de acolhimento a mulheres em situação de violência doméstica em Florianópolis.

Ela recebeu atendimento assistencial, psicológico, médico e odontológico, além de realizar exames que detectaram a existência de vários problemas de saúde, como um mioma no útero, problemas na coluna lombar, infecção bucal e perda de dentes. Constatou-se, também, que a trabalhadora resgatada nunca tinha passado pelo Sistema Público de Saúde e não realizara os ciclos vacinais.

Além disso, foi observado que Sônia não sabia falar, ler ou escrever, nem tinha aprendido a língua de sinais. Ela não recebeu nenhuma escolarização em toda a sua vida e foi privada do direito à comunicação, já que só interagia com membros da família e por meio de linguagem rudimentar.

Em sua defesa, a família Gayotto de Borba alegou o que é comumente afirmado por escravizadores no âmbito doméstico: que a vítima “fazia parte da família”. Contudo, segundo depoimentos de ex-funcionárias do casal, Sônia fazia as refeições com os funcionários, sempre depois dos patrões, e dormia em um quartinho nos fundos da casa. A sua função na dinâmica familiar era a de realizar trabalhos domésticos e ela não tinha acesso aos mesmos direitos que os filhos do casal, tais como educação, saúde etc. A trabalhadora também não estava presente nas fotos da família postadas em redes sociais e não era incluída em viagens e outras atividades de lazer.

No entanto, apesar de todos os indícios de que Sônia viveu por quatro décadas em situação análoga à de escrava, o ministro do STJ Mauro Campbell Marques acolheu as alegações da família e apenas dois meses após o resgate determinou que os investigados Jorge Luiz de Borba e Ana Cristina Gayotto de Borba poderiam visitá-la. A decisão determinou que Sônia poderia até mesmo retornar ao lar onde foi subjugada por tantos anos, caso fosse sua vontade.

A Defensoria Pública da União impetrou habeas corpus para impedir o reencontro entre as partes, sob o argumento de que tal ato violaria a proteção concedida às mulheres vítimas de violência doméstica e possibilitaria o constrangimento da trabalhadora resgatada pelos supostos agressores. Porém, o pedido foi negado pelo ministro do STF André Mendonça e, em setembro de 2023, Sônia regressou à residência da família Gayotto de Borba.

Enquanto isso, o auditor fiscal do trabalho responsável pela operação que libertou Sônia, Humberto Camasmie, foi afastado do caso, alegando sofrer perseguições pela sua atuação.

Ainda que decisões judiciais tenham permitido o retorno da trabalhadora ao lar das pessoas investigadas por submeterem-na à condição análoga à escravidão, diversas instituições e movimentos sociais continuaram se manifestando pela libertação de Sônia. Nesse contexto, foi lançada a campanha global #SôniaLivre, integrada por pessoas e entidades defensoras de direitos humanos e familiares de Sônia Maria de Jesus. Até mesmo o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) manifestou preocupação com o caso por meio da Nota Pública n.º 27/2023.

Além da situação da própria vítima, há preocupação com o precedente aberto pelas decisões judiciais que autorizaram o retorno da trabalhadora liberta ao contexto violador, o que se considera uma clara demonstração de falta de sensibilidade dos órgãos de justiça, que acabam perpetuando a desumanização da pessoa escravizada.

É importante ressaltar que o trabalho escravo contemporâneo no ambiente doméstico tem nuances específicas, a exemplo da não rara existência de vínculo afetivo entre a vítima e o algoz – o que não descaracteriza a relação de trabalho escravo.

No caso de Sônia Maria de Jesus a situação é ainda mais problemática: por ser uma pessoa com deficiência auditiva que foi privada de aprender formas de se comunicar, torna-se mais difícil para a vítima desvencilhar-se emocional, física e psicologicamente do domínio dos seus algozes. Cabe a nós, enquanto sociedade, lutarmos para que Sônia seja liberta e para que nenhuma outra vítima tenha de retornar ao convívio de seus agressores.

* Carla Reita Faria Leal e Amanda Cristina Campos de Almeida são membros do Grupo de Pesquisa sobre o meio ambiente de trabalho da UFMT, o GPMAT.

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