JOÃO GABRIEL FERREIRA
Há palavras que quando ditas por inteiro parecem exagero, mas que no diminutivo viram verdade. Baguncinha, por exemplo. Esse quase aceno de travessura que nomeia o mais inquietente festival que já ocupou Cuiabá. Diminutivo, sim. Mas no calor da cidade, onde tudo transpira antes de se conter, o sufixo não apazigua: ele amplia. É uma ironia gentil que carrega potência. Baguncinha não quer dizer menos: quer dizer por dentro.
A Arena Pantanal, geralmente reservada aos gritos do futebol e à institucionalidade estéril de programações oficiais, abriu-se, no último sábado (12), para um outro tipo de convocação e tornou-se lugar de travessia. No palco, três presenças desenhavam, juntas, um mapa da cena musical contemporânea. Djonga chegou com sua poética de urgência, esculpida em beat e denúncia. Liniker veio trazendo uma liturgia da vulnerabilidade como força e no compasso musical em que o tempo deixa de ser pressa para virar escuta.
Entre eles, e talvez mais profundamente dentro de nós, estava Pacha Ana, cantora mato-grossense. Vê-la ali, diante de uma multidão que a reconhecia, era como ver o estado escutando, enfim, a sua própria origem. Motumbá, seu último álbum, é um gesto que transcende a carne para reencontrar o sagrado sob o canto assentado em camadas do tempo e da memória. O que se viu naquela noite, para além de uma sequência de shows, foi uma espécie de dramaturgia coletiva. Um enredo curatorial em que as vozes se entrecruzavam para dizer: ainda estamos aqui e viemos com tudo o que herdamos e tudo o que ainda seremos.
Além de reunir grandes nomes, o gesto curatorial do festival foi permitir que a cidade se reconhecesse naquilo que há muito tempo tentam apagar: sua linguagem própria na musicalidade e uma nova face de gente jovem reunida com sua estética dissidente. Em tempos de monocultura sonora, em que certos ritmos musicais imperam com a força da repetição, o Festival Baguncinha insurge como alternativa concreta e revolucionária.
No centro de cenografia do Festival, um mural branco pedia às pessoas que completassem a frase: “me sinto cuiabano quando…”. E ali, com giz colorido e letra de rua, cada um pôde escrever seu pertencimento como quem tatua o próprio nome no muro da cidade. Li respostas que falavam do pôr do sol mais colorido do país, das tardes no Porto e no CPA, de comer Maria Isabel com farofa de banana, da descida da Isaac Póvoas e da subida da Getúlio Vargas. E no meio desses sinais íntimos, reaparecia uma outra marca: a memória do VLT, esse vestígio moderno inacabado, um quase sonho atravessado por ferrugem. Símbolo perfeito da promessa sempre adiada de uma cidade que poderia ter sido, mas que ainda tenta ser.
Quando Liniker entrou em cena, trazendo Caju consigo, não era apenas ela quem aparecia. Algo de cidade também se revelava, como se, por instantes, o palco permitisse ver aquilo que normalmente passa encoberto pela poeira dos dias. Caju, ali, não era só o nome de um disco, mas uma espécie de palavra-chave. Uma senha para acessar o que há de mais íntimo na imaginação de quem cresceu entre as luzes da Praça da Mandioca e as árvores da UFMT.
Nos últimos anos, Caju se tornou linguagem gráfica de uma geração. Está tatuado nos braços de cuiabanos mais jovens, bordado em camisetas, grafitado nos muros, impresso em nós. Tornou-se uma forma de dizer: viemos daqui. E talvez por isso tenha sido tão comovente ouvir da própria Liniker, em seu álbum, versos que falam de permanência, do gosto que fica, da memória como lugar de inscrição:
"É preciso ser o retrogosto da boca
E ser eterno em alguma memória
Seu nome não é Caju à toa"
A empolgação do público se entrelaçava com um reconhecimento silencioso, uma escuta atenta de quem entende que certas coisas só existem quando compartilhadas. O Baguncinha soube disso e criou um espaço onde esses símbolos pudessem respirar, não como folclore ou adereço, mas como matéria viva. E ao fazer isso, devolveu à cidade algo que ela mesma já quase tinha esquecido: o direito de se ver em cena.
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